sábado, 19 de abril de 2025

Legendários; a caixa preta


“A verdadeira afeição, na longa ausência se comprova”. Camões

Se há uma coisa que nós, efêmeros habitantes da Terra, lidamos mal, é com o tempo. Temos pressa, mesmo que nem saibamos para onde ir. Quando Moisés foi chamado ao monte, onde receberia os Dez Mandamentos, ao povo foi ordenado que esperasse sua volta.

Como sua ausência se prolongou um pouco, presto decidiram que precisavam de um “plano B”; em novo deus; pois, Moisés teria ido embora como o “Seu”. Assim, fizeram o bezerro de ouro. Como tiveram que arrecadar o metal convencer pessoas e esculpir o dito bicho, e no regresso, Moisés após 40 dias os encontrou numa festa pós culto, aproximadamente, o tempo “insuportável” daquela espera fora de um mês.

Assim, não evidenciaram nenhuma afeição pelo Senhor, que os livrara milagrosamente da escravidão no Egito. Se, trinta dias de espera fora uma demora demasiada para eles, seus anseios festeiros se mostraram mais valiosos que o temor a Deus, e a gratidão por tão maravilhoso livramento.

Nesse caso, nem seria suportar o curso do tempo, que passaria de qualquer forma; antes, domesticar suas comichões por prazeres, festas, tendo valores maiores, em voga.

O sonho de consumo do homem religioso e ímpio, (os dois cabem na mesma bainha) seria “condensar” sua “obediência”, numa espécie de “Pagamento” a Deus com breve período de sacrifício, para depois, pecar “autorizadamente”; afinal, já “pagou o preço”.

Como os Orixás que oferecem seus préstimos em trocas de “despachos” que incluem alimentos e bebidas, esses, de bom grado fariam seus “despachos" pontuais, para “comprar” o direito a viver descuidadamente.

Além do triste retrato da miséria humana, isso é blasfemo, por reduzir ao Altíssimo, ao tamanho das entidades aquelas. Os católicos oferecem suas placas, “Por uma graça alcançada”; uns sobem escadarias de joelhos; outros andam grandes distâncias levando uma cruz; a ideia comum é sempre a mesma; invés do “negue a si mesmo” em submissão a Jesus, requerido, algum tipo de “Pagamento” pelos pecados cometidos, ou, por alguma graça desejada.

Agora, entre os protestantes, surgiram os tais “legendários”, que numa mescla de misticismo, coachismo, escotismo, radicalismo, pretendem resolver mazelas de uma vida de vícios, em três dias de retiro na natureza. A coisa é organizada, uniformizada, estilizada, dispendiosa. As inscrições mais módicas giram em torno de 1500 reais, o que torna a empresa elitizada; impensável para os mais pobres.

Alguns veem a isso como um resgate do “rito de passagem” tribal, onde o jovem era desafiado a matar uma grande presa, para, enfim, ser considerado um homem. Esses pretendem nesses três dias mágicos, passarem da vida viciosa em que viveram, para outra, virtuosa. Apresentar sua camisa laranja, seu número de inscrição a toda a tribo, para que essa veja, que enfim, o tal se tornou um adulto. Tenho medo que a coisa não seja assim tão simples.

O rito de passagem do mundo para Cristo é o mesmo para homens e mulheres; arrependimento, conversão, batismo. Da infância espiritual para a maturidade, a edificação pela Palavra, e o exercício em amor.

Depois de mostrar a insignificância de todos os dons, mesmo os mais portentosos, sem o concurso do amor, Paulo ensinou, que ancorar nosso cristianismo meramente neles, sem o mais nobre dos dons, era coisa de meninos; disse isso de modo indireto, mas perfeitamente compreensível: “Quando eu era menino falava como menino, sentia como menino, discorria como menino; mas logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.” I Cor 13;11

Incluindo, o amor, a capacidade de suportar, as renúncias, e o altruísmo, “não busca os próprios interesses”, talvez, descer ao vale do serviço desinteressado seja mais produtivo que subir ao monte da ilusão comercial, travestido de aperfeiçoamento espiritual.

Sim, é comercial. Embora segundo A Palavra é amaldiçoada a ideia que os dons de Deus se obtenham por dinheiro, Atos 8;20 esses encontros excluem automaticamente aos de baixo poder aquisitivo.

Temo que, seja mais um modismo como as paredes pretas, agora o escotismo gospel de camisas laranjas, cujos frutos tenham a brevidade da flor do hibisco.

Aliás, as “caixas pretas” das aeronaves usam a cor laranja, para serem encontráveis em caso de acidentes; nela estão as últimas falas na cabine, pelas quais as causas do sinistro podem ser deduzidas.

Se aquilo que demanda uma vida de renúncias se pretende produzir em três dias “mágicos”, temo que essa conversa já seja reveladora das causas do “acidente”. O homem ímpio e religioso pretende seguir assim; fazer um “pit stop” pra mostrar “urbe et orbe” sua “boa vontade”, depois continuar como antes, fugindo da Palavra da vida, que o desafia à necessária santidade.

Se alguns mudarem, deveras, será apesar do ritual, e não por causa dele.

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