“Minha alma tem tédio da minha vida; darei livre curso à minha queixa, falarei na amargura da minha alma.” Jó 10;1
Se alguém ler isso isoladamente, concluirá que se trata dum depressivo falando. Caso conheça o contexto, dum próspero que perdera tudo de chofre, inclusive os filhos, ao menos se solidarizará.
“Minha alma tem tédio da minha vida...” Tédio é enfado, aborrecimento, cansaço por uma situação desagradável, prolongada; nele, até a esperança decide se afastar. A “falta de chão” é tal, que até, ser colocado dentro do chão parece desejável. Sim, o infeliz desejou a morte. “Quem dera que se cumprisse meu desejo, e Deus me desse o que espero! Deus quisesse quebrantar-me, soltasse Sua Mão e me acabasse!” Cap 6;8 e 9
Mesmo sofrendo de modo inefável, ele só desejou a morte; como que, orou a Deus por ela; mas nada fez nesse sentido, sabendo que dar a vida ou tirá-la é prerrogativa exclusiva do Criador.
Havia uma luta milenar acontecendo, da qual, mesmo estando alheio, ele era o centro. Sua fidelidade estava sendo testada às últimas consequências, para desfazer um argumento rasteiro de Satanás.
Embora compreensível sua dor e os desejos derivados dela, O Eterno tinha planos melhores; de modo que não ouviu seu anelo doentio.
Quantas vezes acontece de pedirmos algo a Deus, que se recebêssemos faria mais mal do que bem? Deus nos abençoa tanto quando concede o que pedimos, quanto, quando nega. Nesse caso está nos protegendo de nossa própria ignorância.
Outro dia uma criança especial correu rumo a um cânion, em Cambará do Sul, sem tempo para que seus pais evitassem a queda, infelizmente. Ela não tinha noção do perigo, e seus pais não imaginaram que ela faria aquilo; acabou morrendo na queda.
Pois, nas coisas espirituais, todos somos crianças especiais, com limitações cognitivas, sobre perigos que espreitam. Cada, não, às nossas petições, é como uma mureta de proteção na beira do abismo, que nosso amoroso Pai coloca para que não caiamos.
Pois, as “bênçãos” que trariam efeitos colaterais deletérios, não seriam bênçãos. “A bênção do Senhor enriquece e não traz consigo, dores.” Prov 10;22
A fé sadia confia de modo irrestrito; a doentia acredita que Deus dará o que lhe pedirmos.
“... darei livre curso à minha queixa...” eventualmente, alguém numa situação desfavorável, no trabalho, por exemplo, pode evitar mencionar seu descontentamento; temendo perder o emprego, sofrer restrições. Porém, quando chega num estágio onde pensa não ter nada a perder, fala sem temer as consequências; pois, pior não poderá ficar.
Embora compreensível o estado de espírito de Jó, pelas razões vistas, ainda é uma atitude temerária. Tanto que, o próprio sofredor alternou, em estados de ânimo diversos, numa espécie de bipolaridade; se, ora desesperava de tal forma a abdicar da vida, noutras reencontrava a esperança em Deus, mesmo que fosse levado pela morte. “Ainda que Ele me mate, Nele esperarei; contudo, meus caminhos defenderei diante Dele.” Cap 13;15
Então, invés de desejar a morte, desejava defender a retidão dos seus caminhos, a qualquer custo. Pois, era o que estava em apreço; quem estava questionando isso era o inimigo, não O Eterno. Oscilar duma posição emocional a outra, em situações extremas assim, também é uma “incoerência” compreensível.
“... falarei na amargura da minha alma.” Nesses casos, quando o amargo é mui intenso, as palavras podem tropeçar na lógica, na coerência, como um ébrio nos pedregulhos do caminho. Então, quando O Eterno finalmente concedeu a audiência desejada, começou assim: “Quem é este que escurece o conselho com palavras sem conhecimento?” Cap 38;2
Depois, a suprema ironia do Eterno foi apresentada como recurso retórico: “Agora cinge teus lombos, como homem; perguntar-te-ei, e tu Me ensinarás.” V 3
O Eterno queria Se “matricular” na escola de Jó e aprender com ele. As quarenta perguntas que fez distanciando ao Criador das criaturas bastaram, para ele entender seu lugar, que é também o nosso. “Escuta-me, pois, eu falarei; eu Te perguntarei, e Tu me ensinarás. Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora Te veem meus olhos. Por isso me abomino; me arrependo no pó e na cinza.” Cap 42;4 a 6
Então, ele se matriculou na “Faculdade Eterna”.
Não importa quão intensa seja nossa dor; nem quão fundadas nossas razões em reclamar; se O Eterno a permite, mesmo nós sendo fiéis a Ele, como fora Jó, sempre terá razões sábias para isso.
A Jó foi dado o dobro do que perdera, e a honra de sua saga estar na Palavra de Deus, para que por ela, possamos entender, em parte, acerca do sofrimento dos justos. A fé que visa se evadir ao sofrimento é reles fuga; a que confia deveras, brilha mesmo sob tempestades.
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