sexta-feira, 10 de abril de 2020

Águas


O rio da vida deveria ser margeado por campinas e flores apenas; rumar sem pressa ao mar do tempo, num remanso contínuo sem o concurso de correntes furiosas, nem das cascatas entre rochedos tão agudos.

Deveria ser proibido tocar o despertador de Peter Pan, de modo que jamais carecêssemos dar passos de gente grande. Como disse uma criança citada por Mário Quintana, “Os elefantes deveriam ser assinzinhos” talvez, para a gente contê-los, dentro das mãos. Mas não são. Digo, a vida tem suas proporções a despeito dos nossos desejos.

Quiçá ansiássemos com uma estonteante magia como a da “Fabulosa Fábrica de Chocolate”, onde navegássemos no dito cujo ainda em estado líquido. Mas, sem mais nem menos vem a queda das decepções, a correnteza das frustrações, e a água, antes potável, fica salgada muito antes de chegarmos ao mar.

De repente, sem termos buscado por isso nos vemos donos das moedas das escolhas, onde a cara de um sim, traz a coroa de muitos nãos. Digo, ao escolhermos ter algo precisamos perder outras coisas; ou, no anelo de preservar essas, o algo primeiro se vai. Na dieta das escolhas não se pode alimentar a onça mantendo o cabrito vivo.

Diria que, num contexto como o atual, não se pode fazer quarentena e buscar o pão, ao mesmo tempo.

Uma vez feita a escolha e o rio tendo desenvolvido um tanto mais, seu curso, não raro nos deparamos pensando em como teria sido se, determinados nãos, tivessem sido sins, ou vice-versa... nunca saberemos. Ou, saudosos de coisas passadas dizemos que éramos felizes e não sabíamos. Será que o curso ao tempo ajuda-nos a ver melhor? Ou, as frustrações pertinentes ao caminho escolhido desejam sua fuga por um desconhecido e presumido melhor?

Segundo Salomão, piorarem as coisas à medida que o tempo avança é a ordem natural; “Nunca digas: Por que foram os dias passados melhores do que estes? Porque não provém da sabedoria esta pergunta.” Ecl 7;10

Deus nos condenou à liberdade, e presos nela agonizamos na sina de que ninguém faz as escolhas certas por nós. Eis a alta cascata das decisões consequentes com seu salto assustador no vácuo das incertezas!

Ninguém opta pelo pior para si sabendo ser esse o pior; se o faz são os logros da vista e o patrocínio das esperanças infundadas que o motivaram de modo a pensar que era o melhor.

Nossos sonhos sempre nos inflam trazendo desproporções, uma espécie de Céu na Terra; grandezas que a vida real, sisuda costuma negar categoricamente. Nem por isso deixamos de sonhar.

Afinal a fórmula da água é H2O, e sempre que nossa fórmula estiver no H1, estaremos a fruir anseios pela “molécula complementar” que daria o equilíbrio ao nosso mineral.

Alguém definiu poeticamente que somos como anjos de só uma asa que apenas abraçados conseguem voar, para ilustrar a necessidade do “meio cheio, ao meio vazio”, ou, da “metade da laranja” num dito mais antigo.

Na verdade são dois rios que se encontram para daí em diante formar um. E nas escolhas do coração nem sempre as águas coincidem; às vezes são mui distintas como a do Rio Negro com o Solimões.

No entanto tendemos a esperar do “afluente” de nossa escolha que veja as coisas como nós. Cada ser humano é um mini-universo, com percepções, gostos e experiências muito suas o que para o relacionamento interpessoal acontecer de modo sadio demanda concessões, renúncias, empatia, nem sempre encontráveis.

Assim como atrito forte das correntezas gasta as pedras aparando-lhes as arestas e deixando-as bonitas arredondadas e úteis para decorar ambientes, são as águas turbulentas das decepções, incompreensões, calúnias, zombarias e males afins que nos moldam pouco a pouco, quebrando pontas de egoísmo, indiferença, teimosias e nos fazem mais moldáveis à sina de viver.

O barro do qual somos feitos pode até ostentar coisas preciosas pelo toque da “alquimia” Daquele que o molda, desde que consiga, como intenta, tocar em nossos ouvidos...

Assim como as águas tendem a ser mais limpas tanto quanto mais correntes, e as paradas mais lamacentas, são as adversidades, as incompreensões, as dores do dia a dia que nos melhoram se, soubermos haurir as lições as nós aplicadas pelo Senhor das Águas. “As águas que viste... são povos, e multidões, e nações, e línguas.” Apoc 17;15

Ilustrando à congregação dos Santos o poeta aludiu também a um rio; não foi de águas paradas; “Há um rio cujas correntes alegram a cidade de Deus, o santuário das moradas do Altíssimo.” Sal 46;4

Enfim, mesmo com todas as agruras, os nãos de nossa caminhada, se, no fim, invés do mar do esquecimento viermos a figurar nesse rio, as dores pretéritas serão apenas águas passadas.

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